Uma noite para Luiza
Sentou-se na cama e, erguendo a perna direita, apoiou o calcanhar sobre a guarnição do móvel e pôs-se a esfregar entre os dedos do pé, formando rolinhos da pele escamada das frieiras. As molas do colchão rangiam a cada movimento do corpo, clamando, sutilmente, pela compra urgente de outro colchão.
Calçou as velhas Havaianas e em chapes-chapes que acordaram o resto da família dirigiu-se ao banheiro. Viu refletida no espelho a sombra de uma barba de três dias serem envolvidas pela espuma sedosa do creme de barbear. O cafuné provocado pelo roçar macio do pincel excitava-lhe, porém, a lâmina, um tanto gasta, não lhe permitiu vislumbrar o semblante da loira de olhos verdes do comercial, mas somente o moleque murrinha que diz: “A primeira faz tchuumm, a segunda faz tchaammm, e a terceira…”.
Uma ducha o deixaria, quem sabe, um pouco menos mal-humorado. Enquanto o chuveiro aquecia, escorou-se com a mão esquerda na parede azulejada e, com a direita, abriu a braguilha da calça do pijama para urinar. Imaginou o chefe afogando-se naquele mar, gritando, histérico, que o seu colete de veludo não poderia ser molhado. Sentiu raiva. E foi com a mesma raiva que apertou o tubo da Colgate sobre as cerdas da escova, lambuzando pia e piso; escovou os dentes e gengivas, pensando na hora marcada com o dentista para dali a dois dias. A tépida água do chuveiro e o odor de erva-doce do sabonete lembraram-lhe Luiza. Esta lembrança arrefeceu o sentimento de raiva.
Na cozinha, o copo de suco de laranja foi sorvido num só gole. De volta ao quarto, vestiu calças jeans, camisa de mangas longas branca e calçou os tênis.
Sob as arcadas do Viaduto, viu-se obrigado a executar malabarismos, evitando, assim, pisotear os restos fétidos dos boêmios da Cidade Baixa. No alto, um avião cruzava os céus. Sonhou com a viagem ao Oriente. Sorriu ao pensar uma vez mais em Luiza.
Na repartição, as imagens monitor do computador deixavam João Pedro sonolento. Um café bem forte seria um estimulante. Na copa, a ladainha constante dos colegas: o novo índice do reajuste que a governadora s negava a aprovar.
Às onze e meia era o intervalo para o almoço. O chefe, por alguma razão que ele desconhecia, não aparecera naquela manhã. Em casa, o prato era macarrão e carne de panela. Comeu prazerosamente com o pensamento em Luiza; saudades de Luiza. Sobremesa: um pudim de leite condensado. Na TV, o megalômano comentarista estertorava, catando uma última bagana do cigarro. Dentes novamente escovados; estava pronto para retornar ao trabalho. No corredor do edifício, ouviu o ruído de socos e pontapés. Era o vizinho, furioso com a demora do elevador, estacionado entre um andar e outro. Como de hábito, aquele estudante de medicina, do segundo andar, praticava exercícios de anatomia, em generosas e candentes incursões ao generoso corpo da mulata Rosa Maria, cria do professor de regência musical, do oitavo andar.
À tarde o trabalho mostrou-se incessante. O chefe passeava pela sala no seu passo lépido e faceiro, olhar perscrutador, provocador, enganador, como o de uma cafetina a controlar os ímpetos da clientela embriagada. Mas João Pedro o ignorou. À noite, estaria com a sua namorada. Jantariam todos. A mãe da namorada é cozinheira de mancheias. Sorriu à lembrança dos quitutes de D. Eunice e ao pensar em Luiza. Sentiu uma vontade imensa de ver Luiza, acariciar e beijar o corpo inteiro de Luiza. De fazer amor com Luiza.
Distanciou-se do silêncio do seu computador. Esqueceu-se da hora do cafezinho. Não se fechou no banheiro para ler jornal. Não ouviu o choro dos colegas, lamentando o veto ao reajuste. Não viu as horas passarem e tampouco o chefe conferindo se ele trabalhara. O expediente havia chegado ao fim.
Ele desligou a máquina e apressadamente recolheu o material de trabalho à gaveta. “Amanhã será outro dia.”, pensou. Hoje, iria jantar na casa da namorada. Afinal, ela deveria estar ansiosa à sua espera, cheia de desejos.
E Luiza, mais ainda…