Vetar era preciso

“Se não puder dobrar os deuses de cima, comoverei
o Aqueronte)”
(Virgílio, Eneida, Livro II, 312

Em Crime e Castigo, Dostoievski narra, no Capítulo V, o sonho de Raskólhnikov, o protagonista desta magistral obra, com a sua passada infância, na aldeia natal: Tinha sete anos e passeava, num dia festivo, ao cair da tarde, com seu pai, para além da aldeia. O lugar era exatamente o mesmo cuja visão guardava na sua memória.

Ali havia uma taberna, pela qual sempre sentira antipatia, e até medo, quando passava em frente dela. Havia sempre muita gente; vociferavam, diziam impropérios, bebiam tão excessiva e imoderadamente e havia rixas com freqüência. Raskólhnikov assistira uma cena dantesca e indelével que, sempre ao lembrá-la, quase lhe vinham lágrimas aos olhos: um bando de camponeses embriagados saia da taberna e, incitado por um de seus integrantes, embarcava numa tieliega ( carroça para transportar cargas (os)) – atrelada a uma velha e esquálida égua para um passeio a toda brida.

Raskólhnikov ouvia os berros do homem que ora segurava as rédeas “subam, amigos, levo a todos, pois esta cavalgadura é minha e mais vale a pena matá-la”. O animal sequer pôde sair a trote. Então, de todos os lados infligiram-lhe vergastadas com chicotes, cajado e, até mesmo com uma barra de ferro. Os miolos ornaram a arena e a desvalida eguazinha dessangrou, em lenta agonia, até morrer. Raskólhnikov, se não pôde se determinar e agir a favor da vida e integridade do indefeso cavalinho, não compactuou com o primitivo espetáculo.

A Governadora Yeda Crusius, por sua vez, ao vetar o projeto que criaria a verba de representação para os membros da Defensoria Pública – já não bastassem os estratosféricos reajustes impostos pelos Poderes Legislativo e Judiciário – agiu como deve agir um autêntico governante! Em defesa de seus interesses, representantes dos Poderes contemplados argumentaram, à época, que “o dinheiro é nosso”, “vou solicitar a rejeição do veto” e “há um descumprimento de compromisso”. Têm sua razão. Não apenas os reajustes do combustível do bólido ganham velocidade de F-1, o cloro da piscina da cobertura de Suas Excelências necessita ser renovado, mas, a exemplo do “Primo Pobre”, deve ser mantida a dignidade nos itens básicos. Isto – só na imaginação dessas elites – não implica em desfavor do Executivo, ante à máxima do “Matheus, primeiro eu!”.
Colocado em votação na terça-feira, o resultado pela derrubada do veto foi de 27 a 23. Desta forma, os defensores ficaram apenas a um voto de conquistar a vantagem salarial já paga ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e ao Judiciário.

A rejeição ao veto ficou na consciência(?) dos parlamentares que por ela votaram. A égua da festa, no caso, o Executivo (professores, policiais civis e militares e servidores do quadro geral) não apenas deixaria de ganhar a ração; como o cavalinho, o Executivo seria, uma vez mais chicoteado, vergastado, humilhado e aviltado, em face do distanciamento dos ganhos de seus servidores que vem se tornando hábito nas cinco últimas administrações estaduais.

Os vencimentos já não se prestam, sequer, à dignidade de uma boa mesa, à aquisição de medicamento de uso contínuo, vestuário e à hedionda e maquiavélica taxação dos serviços bancários a que se vê constrangido.

O Rio Grande não merecia ser palco de “Crime e Castigo”

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