Bicicleta dá cadeia
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— Peguei a camionete para dar uma voltinha e fui parar no Lamí. Com a chuva da tarde, não venci uma curva, capotei. Preciso de ajuda para desvirar o carro.
Como voluntários, se prontificaram Harley Dullius, Guto e Alírio . A carona ao local do acidente foi fornecida pelo tio de Artur, que logo voltou, deixando ao quarteto a incumbência de trazer o veículo.
A camioneta, com as rodas para o ar, havia se encaixado, simetricamente, dentro de um valo, à margem da estrada. De volta à posição normal, não houve jeito de dar a partida.
Alguns metros do local do acidente havia uma pequena vila para onde o carro foi empurrado. Abrigaram-se os quatro no veículo e passaram a lucubrar de que forma preencher o tempo naquela noite de sábado. Não havia, entretanto, qualquer diversão que pudesse ocupá-los. A informação das pessoas do lugar era de que somente no dia seguinte, depois das sete da manhã, passaria o primeiro ônibus rumo ao Centro.
Anoitecia. Solução: comprar um vinho e bebê-lo, aguardando o dia amanhecer. Logo, logo, começou a animação. Uma dupla no banco da frente e a outra no de trás. O quarteto pôs-se a cantar em tom desafinado, para o horror da gente daquele pequeno lugarejo:
— “Porém, se a Pátria amada/Precisar da macacada/P… m… que cagada…”.
Ainda:
— “Subi no bonde dei um tapa na fivela/Tropiquei na manivela/O condutor filha da p… me botou pela janela/Cai de lado, com o c… amassado/O condutor filha da p… me mandou pro delegado/O delegado tinha cara de veado, pinta de urubu/E eu mandei tomar no c…”.
Mas não ficava apenas nisso:
— “Te lembra daquela f…/Que eu te dei lá na cozinha/De c… prá trás?/Não te quero mais…/Te enganei com meio quilo de lingüiça/pensou que era minha p…/Não te quero mais…/Mas se tua achas que não sou bastante/Vai f… com elefante que tu ganha mais…”.
De repente Guto enxergou uma bicicleta encostada à parede de uma casa. Resolveu passear com a bicicleta e pôs-se a andar em círculos, ao redor da camioneta. Harley não se conteve e pede para pedalar. E ficaram ali, os dois, feitos crianças, se revezando no pedal. Por fim, se aborreceram e decidiram voltar para o Centro de Porto Alegre. De bicicleta.
Quem ficou no carro conta que, por algum tempo, ouviu vozes e risadas dos fugitivos. Aos poucos, o silêncio se fez sentir. A dupla da bicicleta, definitivamente, desaparecera na noite.
Alírio e Artur, ali, madrugada de domingo, no extremo sul de Porto Alegre. Enquanto isso, os outros dois companheiros, evadidos de bicicleta, àquelas alturas, longe, quase no Centro. Alírio , impaciente, resolve tomar o mesmo caminho.
— E de forma vais? — indagou Poester.
— De carona.
E saiu do carro à procura de carona. Não demorou muito ele avistou dois faróis: — “Chegou a carona”, pensou. O veículo parou.
Era a Brigada Militar, certamente acionada por algum morador do lugarejo. A lanterna forte, no rosto do Alírio , ofuscava a sua visão.
— E daí — indagou o brigadiano — cadê a bicicleta?
— Qual bicicleta?
— A que vocês estavam a andar há pouco?
— Meus dois amigos com ela foram para o Centro pedir ajuda!
— Sabe de quem é a bicicleta?
— Não faço idéia.
— É do Posto Policial. Eles roubaram a bicicleta da Polícia! Chama o teu amigo, vamos para a delegacia.
A viatura da Brigada era uma “picape”, toldo de lona, que servia, na verdade, mais para transportar os soldados do que propriamente encarcerar alguém, pois sequer havia porta traseira.
Detidos, Artur e Alírio tomaram o rumo da delegacia de Belém Novo. No trajeto, de repente, a camioneta estacionou ao largo da estrada. Para surpresa dos dois detentos, surgem as figuras do Guto e do Dullius a caminhar na estrada, porém sem a bicicleta.
A surpresa do Alírio foi tanta quanto ingênua:
— Olha o Guto e o Harley, ali — apontando para dois amigos, denunciando-os aos policiais.
Os brigadianos intimaram os dois:
— Cadê a bicicleta?
— Que bicicleta? — tentou tergiversar Guto.
— A bicicleta que vocês roubaram do Posto Policial?
— Bom… eu explico! — interveio, Harley. — A bicicleta… furou o pneu e… jogamos fora!
— Jogaram fora? Em que lugar?
— Lá atrás… Num valão.
— Não acredito. Vocês vão voltar e procurar a bicicleta.
A madrugada ia alta e os quatro, nos limites de Porto Alegre, à procura de uma bicicleta de propriedade da Polícia, que havia sido jogada, como ordinário objeto, num valo qualquer do Lamí. Impossível achá-la naquelas condições. Somente seria viável após o amanhecer, e ainda assim com muita sorte. Resultado: Os quatro foram levados para a delegacia de Belém Novo.
Vivia-se, naquela ocasião, o pior momento da ditadura do General Médici. Não havia garantias. A polícia — bastava querer — poderia afogar os quatros no Rio Guaíba sem que nada a ela acontecesse; os sepultaria em algum cemitério clandestino, sem que as famílias jamais soubessem seus destinos. Assim mesmo, os quatro ainda tiveram a ousadia de entrar com arrogância na Delegacia, dispostos a enfrentar o policial com desdém. Guto não esperou e foi anunciando:
— “Seu” Delegado, estão fazendo alarido desnecessário por causa de uma merda de bicicleta, do Posto Policial. Segunda-feira eu falo com o meu pai e ele — tenho certeza — compra quatro bicicletas para vocês.
A resposta foi uma forte bofetada no rosto do atrevido larápio, outra em Harley e um soco na altura do estômago do Alírio , que foi ao chão. Poupado, mesmo, somente o Artur.
— O que vocês estão pensando — iniciou o policial, aos gritos — corja de filhos da p…! Vocês capotam um carro na estrada, — (nessas alturas ele sabia do que havia acontecido) — se embebedam, cantam bandalheiras para toda a vila ouvir e os impedem que durmam, tamanha arruaça e gritaria; roubam a bicicleta do Posto Policial e a jogam fora. Debochados, entram na delegacia cantando vantagens! Onde é que eu estou que não levo vocês lá para o porão e dou tratamento digno de vagabundos? Ou deixo os quatro à disposição do DOPS e ai não há pai nem mãe, advogado ou juiz. Ninguém libera vocês. Quando clarear o dia irão procurar a bicicleta. Caso não achem, encaminho os quatro ao Presídio Central ou ao DOPS, é questão a examinar. E sentem ali — apontado um banco — e esperem o amanhecer!
Pela manhã, depois de demorada busca, acharam enfim, por sorte, a bicicleta intacta, somente com os pneus furados. O policial encarregado da ocorrência, agora calmo, liberou-os, não sem antes intimá-los para voltarem na tarde da segunda-feira para dar continuidade ao assunto.
No dia e hora marcados estavam os quatros, desta vez acompanhados da mãe do Artur, que logo indagou ao delegado:
— Eu soube que os rapazes foram agredidos, no sábado, dentro da sua delegacia.
O policial, da mesma forma, foi direto:
— Minha senhora, a ser verdade o que me é relatado, a autoridade responsável restará punida, tenha certeza. Mas, alerto, serei obrigado a remeter o inquérito referente aos rapazes à Delegacia de Furtos e Roubos, para que tome as medidas necessárias que o caso exige.
Naquele momento, à distância, o Alírio reconheceu o Dr. Geraldo Brochado da Rocha, amigo da família e que, por sorte, ali se encontrava cumprindo compromisso profissional.
Prontamente, atendendo apelo, o Doutor Brochado da Rocha acudiu aos quatro, argumentando ao delegado que, conhecendo um deles, atestava pelos demais. A situação restou contornada com habilidade; o caso referente à agressão do policial seria esquecida e a ocorrência dada por encerrada.
Ao final, ao um canto, o advogado aconselhou aos quatro:
— Aprendam, bicicleta é como automóvel, quando não nos pertence, passa-se ao largo, à distância. De outro modo, dá cadeia.