Folia de casal – José Alberto Silva

José Alberto Santos da Silva
José Alberto Santos da Silva
José Alberto Santos da Silva

FOLIA DE CASAL

Folia de casal, saudável ou doentia, faz o encanto de um pelo outro, supondo base amorosa. Alto e baixo, positivo e negativo. Visível em alguns, noutros é segredo. Uns fantasiam a cumplicidade até os limites da incompreensão calcados em partes insondáveis de suas mentes. Outros fazem festas, passeios, estudos, viagens. Conheci casal cuja identificação visceral era a mentira, até matarem uma criança, filha de um deles. Testemunhos disseram perceber das mentiras que aplicavam e esperavam ocasião para dizer-lhes que não enganavam ninguém. Excederam seus limites. Não ha cumplicidade entre eu e minha mulher Ione. Relação insossa. Não lembro sentimento que nos vinculou além de uma avaliação funcional administrativa, tipo meio social, nível escolar. Uma gravidez e a coisa feita se concretizou num noivado atrás da Igreja da sagrada folia juvenil. Nosso filho sequer reconhecia nossa paternidade.

A Ione tem uma gêmea chamada Ione. Ione Maria e Ione Mariá. Chamamos ambas de Ione, diferenciadas pela entonação e intimidade com cada uma. A gêmea da Ione mora em Imbituba, a 400 quilômetros de Porto Alegre. Nascidas em 14 de maio, dia do abandono negro no Brasil, por se sentirem igualmente abandonadas. À necessidade de um encontro revezam as viagens. Não era nossa vez, mas como minha relação com a Ione havia degringolado em superstições, naquele outono fomos a SC numa viagem emburrada de muxoxos. Nossa relação malignizava ingratidão. Foi nossa última briga há dez anos. Ela ficaria uns dias por lá comemorando o aniversário delas. Enchemos o banco de trás com presentes, malas, cobertores, travesseiros, isopores e entulhos, e eu voltaria para Porto.

Imbituba, profusa de planta de meia altura chamada Imbé. Queriam que eu ficasse. O marido da Ione, cadeirudo, parece usar fraldas. Comunica-se com caretas que se abrem em sorrisos que irradiam beneplácitos de simpatia. São hilárias as caretas quando parecem repugnar ingestão ou esforços defecantes. As gêmeas entravam e saíam do carro, aos gritos e cochichos; trocavam juras de saudade, orquídeas e verbalidades. Após alguns dias juntas, porém, mostravam o escuro da meia noite lunar com achincalhos gerais. Num encontro anterior àquele repetiram as vias de fato. Sim. A agredida não revidava, chorava cabisbaixa como criança castigada pela mãe. Era quando eu fingia roncar como um gato e o cadeirudo atentava a um anacrônico rádio de pilha, colado ao ouvido, que não se sabia se funcionava.

Parti às 18 horas. O rádio batia o samba chuviscado do outono/inverno que trovejava sustos noite adentro. No ar enevoado eu pensaria em voz alta sem censuras. De saltitante nicoleta ninfeta ela passou a bater calcanhares de queixume para me dar o “dever” da meia bunda. Sabes do sol enregelado de inverno? Tem gente que gosta. Queixava-me das vezes que se faz de desentendida quando chamo pela – Ione! – e ela pergunta se estou falando com ela ou com a “outra” distante; ou quando sua sensibilidade nasal quer que eu identifique cheiros que ela sinta fazendo descrições infantis. Sempre sentia perfumes misteriosos ao abrir meu roupeiro.

– Claro! – dizia ela, – ninguém sente o fedor de seus odores.

Na culinária dos pretos, mocotós e feijoadas, doces de abóbora e batata doce, tinha que sentir determinado aroma para serem de boa qualidade. Em noites de inverno sentia cheiro de gás para eu revisar escapamentos. Ao atravessar a fronteira de volta ao Rio Grande, porém, algo soou injusto da minha parte. Procurei retorno a Imbituba. Afinal, assim como assim. Uma placa anunciava um a 3 quilômetros. Retornei para cozinhar restos de nosso prazer, eventual e dispendioso, ruminando sobre o que ainda temos à guisa de paixão.

De que valeria voltar sem ela e me sentir rarefeito ou flutuante como pó. De novo reavaliei o custo da BR 101 e daquela ponte que não ficava pronta. Lembrei-me das reformas de base propostas por Joao Goulart que incluía a expropriação de alguns hectares ao longo das estradas federais para fins de reforma agraria. Quando viajava sozinha, durante o dia, eu contava as horas pela chegada da noite; sim, a noite, aquela amiga que já me serviu de manto para aconchegar sonhos de quase poesia; o crepúsculo, no entanto, regido por um Orixá de passagem, fazia do entardecer uma ameaça de horas incertas sobre um outro amanhecer.

– Nega entojada! – eu gritava. Não sabemos o que significa, mas a ofende. Reconhecia esforço nela, mas enumerava itens de mudança. É o amor por algo ou alguém que a gente gostaria de modificar esquecendo que tais mudanças irão desfigurar a natureza da coisa ou pessoa amada. Brabinho, numa placa de retorno voltei para Porto Alegre em manobra ríspida. Lembrei que as superstições dela me adoecem. Outro dia eu recolhia a mesa e ela me proibiu de enfiar o prato no cesto para despejar os restos de comida, sabes por quê? Não ouvi. Deve ter um manual da credulidade nacional fantasiada de verde/amarelo. Apropriado para esta republiqueta, dominada por restolhos humanos, refúgio de criminosos. Por trajetória de ódio, injustiça, e má-fé, o país tornou pusilânime quase todo homem brasileiro.

Retornei a Imbituba brabinho com meus próprios botões. Ao repassar Laguna concluí que o custo daquela ponte deve ter remodelado a vida de alguns. Criticava meus pecados com a Ione. Chuviscava de novo. Buzinei. Afinal, as gêmeas esquisitas são alegres, estudiosas, choram, mas não dramatizam, frias frente à dificuldades, solidárias com os que devem ser. Quando a mulher é estudiosa e braba ao mesmo tempo ela me provoca fúrias de tesão. Eu não sabia sobre a sexualidade da outra, mas a minha Ione personificava a lascívia da mãe natureza. Pela lei do retorno o carma não cobra pecados inocentes. A Ione e o marido vieram sobressaltados conferir o sucedido. A Ione sempre comentava sobre as caretas do cadeirudo que, às vezes, para irritá-la, terminavam em choro convulsivo.

– O que vocês fazem aqui? Cadê tua mulherzinha?

– Vocês?! – assustado olhei em volta – Quem mais ela estaria vendo comigo?

Falando nervosamente como uma puta na chuva a Ione movimentava em volta do carro; abriu a porta de trás e sacudiu coisas amontoadas e a irmã.

– Acorda, Ione! Acorda, sarará do mato grosso! Esse carro está fedendo a rabisca dormida! – E virando-se para o marido gritou – Para de chorar na chuva, maricas!

Pois a Ione estava comigo no carro, nidificada entre cobertores e entulhos. Ela ouviu meus pensamentos em voz alta? Foi e voltou comigo em silêncio? Terá me ouvido confessar que deixei sua prima Violeta toda suadinha numa visita que me fez ao almoxarifado? Será que me ouviu lembrar que num jantar na casa dela eu quase me completei no sonho de Onam? Terá ouvido sobre meus roubos do IR? E sobre a morbidez de imaginar desafetos num caixão?

Faz dez anos deste acontecido. Não mais dormiria descansado. Redobrei atenções com a Ione. Seria ela ou o voejar das poeiras. Jurei dissuadi-la de possível vingança. Nunca falamos daquilo. Folia do silêncio. Divertido para ela se a par de uma colossal vingança, ela ainda viva cochichando coisas com a irmã, como o fez ao embarcar em meu carro sem que eu percebesse.

Após os cânticos de aniversário voltamos ao lar conversando sobre os inebriantes perfumes da estrada ensolarada.

– A Ione deve ser tratada como uma rainha – reclamou a Ione ao lado do marido fazendo caretas de aquiescência ao nos despedirmos.

– Verdade! – Concordei, concorde, concordino, piando fino. – Ione, a Rainha Doce!

As gêmeas não brigaram mais a tapas e puxões de cabelos. Elas não aceitavam as dores uma da outra por marido nenhum. Brotou cumplicidade parecida com folia de casal e suas escaramuças se limitaram a verbalidades obscenas. Hoje ao fazermos esta viagem penso que pago minha dívida com o silêncio da Ione, cujo significado eu nunca compreendi. Resignado, basta-me pensar que pela Lei do Retorno não quero mais conviver com ingratos ou povos autofágicos.

José Alberto Silva

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