Meus “afilhados”
Estou novamente a provocando, o que não foi preciso com meu dileto amigo, o advogado Jorge Alberto Vignoli.
Vignoli, como o é o meu também dileto amigo, Erner Machado, é um narrador de histórias, um contador de “causos”. Ele fará, em coluna própria, sua estreia no Litoralmania, na próxima quinta-feira. Hoje, a título de apresentação, é dele a nostálgica crônica agora transcrita:
CAPÃO DA CANOA
A reminiscência mais remota que eu tenho de Capão da Canoa foi quando minha mãe me mostrou uma planta do nosso futuro apartamento, com desenhos e riscos que nada entendi. Eu tinha seis anos. E a primeira viagem a Capão para conhecer o apartamento foi no meio daquele ano de 57, num velho Prefect, que, de tão mal conservado, não sei como resistiu à viagem.
No verão seguinte, estávamos prontos para o primeiro veraneio.
O apartamento era simples e pequeno; a entrada da cozinha e do banheiro ficava lado a lado no corredor, levando à única sala que servia também de dormitório.
Ali, foram acomodados dois beliches, uma mesa e algumas cadeiras. Assim, meio que acampados – à noite armavam-se outras camas, arredando-se a mesa e as cadeiras – reuniam-se os quatro filhos, pai, mãe e a inseparável Otavina, que cozinhava em um pequeno fogareiro.
A viagem Porto Alegre-Capão era longa e cansativa. Saíamos de madrugada; em Santo Antônio da Patrulha havia parada obrigatória, esticávamos as pernas, íamos ao banheiro e degustávamos um sonho enorme, inflado e polvilhado de açúcar com canela.
A partir de Osório, seguíamos pela BR-101, na época, de “chão batido”, poeirenta nos dias secos e embarrada nos de chuva para dobrarmos em Morro Alto, até Capão da Canoa. E como se viam automóveis estragados pelo caminho, à margem da estrada, muitos dos quais com os motores fervendo a soltar nuvem de vapor pelo ar!
Naqueles idos, Capão da Canoa oferecia alguns divertimentos e pouco conforto, mas suficiente para preencher as férias. O esgoto era a céu aberto. O mar, como sempre, gelado e marrom. O vento forte soprando do nordeste, não impedia, no entanto, os mergulhos diários. Nós, crianças, não éramos refratários ao pouco convidativo Atlântico.
Acho até que nem sentíamos o frio e o vento. Havia a Praça Central, as matinês no Cinema Rio-grandense, o Longo, armazém de secos e molhados, o mais surtido da praia.
Na Praça do Farol funcionava um parque de diversões durante a temporada. Havia aluguéis de cavalos e charretes, estacionados em frente aos edifícios Xavantes e Aimoré, à espera dos fregueses cativos, entre os quais, eu. Os bares e restaurantes conhecidos eram o Meu Pontinho e o Corujão, além da Churrascaria São Luiz, todos na Rua Pindorama. O Maquiné continua, até hoje perto da Igreja. Na Zona Norte, o Restaurante Acapulco, tocado pelo seu Carlitos e a mulher.
Para os privilegiados sócios da SACC, nos fins de semana, bailes com apresentação de artistas famosos.
Os nativos, amedrontados, contavam aos veranistas as histórias do “homem de branco”, cujo vulto, eles acreditavam, costumava aparecer às pessoas que voltavam para a casa na madrugada.
Às dez horas da noite os geradores de luz se apagavam e só eram religados na manhã seguinte. Usava-se, no breu, velas e lampião a querosene para enfrentar a madrugada. Telefone existia apenas numa acanhada Central, e a ligação para Porto Alegre não demorava menos do que cinco horas!
Era mais fácil ouvir e enviar recados através de uma emissora de rádio, que os transmitiam em variados horários, diariamente. Isso que Capão era a praia do Jango e do governador Brizola. Veraneavam na bela casa verde clara, geminada, perto do mar e do Farol, onde hoje é o Edifício São Borja. Algumas vezes vi Brizola de camisa, calção e chinelos no avarandado da casa; logo adiante o exílio seria seu refúgio.
O nosso edifício era o Rivieira, que disputava com o Marajoara confrontos históricos no futebol: cada jogo, uma guerra. O Marajoara trazia um moleque cujo apelido era “Garrincha”, pois driblava feito um louco; com a bola nos pés fazia furor na zaga adversária e, como quem lhe inspirara o apelido, somente era parado com falta.
Em compensação, nossa dupla de impetuosos atacantes era formada pelos irmãos Cauby e Ubiratan Maluf. Cauby, muitos anos depois, se tornaria o sempre aclamado presidente da SACC. Lembro-me do Osmani, filho do zelador, que nunca vira um edifício com elevador. Não compreendia como uma caixa que subia e descia deixava as pessoas nos andares certos, bastando o toque em um simples botão.
Os veraneios, para o meu desalento, duraram até o ano de 64.
Após muitos anos, retornei a Capão da Canoa, já elevada à condição de cidade. Como estava desordenadamente crescida, o contraste entre a miséria e o luxo das novas construções refletem o absurdo do nosso celerado mundo.
Muitas ruas que antigamente eram de pedra bruta e irregular, agora davam lugar a um asfalto tosco. E Capão possui – certamente para a alegria de Osmani – incontáveis edifícios com elevador.
Não me contendo, fui ao velho Edifício Rivieira. Era como se fosse o reencontro de afetuosos amigos. Tudo parecia como antes: subi as escadas, refazendo um caminho que havia percorrido talvez centenas de vezes e, no segundo andar, deparei-me com “nosso” apartamento: 211.
Parei na frente da porta e tive uma vontade imensa de bater e me apresentar. Diria a quem atendesse: “Desculpe, mas sou filho do fulano, que comprou este apartamento ainda na planta; gostaria de entrar e revê-lo”.
Acanhado, contive o ímpeto. Vi-me criança, lembrei-me dos momentos que ali vivera, dos amigos, das brincadeiras e do futebol. As pessoas que povoaram o prédio naqueles idos haviam desaparecido. Quem sabe muitos deles, como fantasmas, não estariam ali, a contemplar-me enternecidos?