Colunistas

Sobejos Cívicos

Eu sempre achei que, quando o governante não se comporta bem, o povo tem o dever de ir ao Palácio e puxar as  sua orelhas. E caso ele não se componha, que o coloque na rua, que o tire do cargo, nem que seja a fórceps. Quem elegeu tem o direito de “deseleger”.  Mas o nosso povo é de índole dócil, e, ao que me lembro, somente uma vez saiu às ruas para tirar o timão do governante. Até a CUT, o CEPERGS e o MST andam cabisbaixos como se o governo federal e o estadual não andassem a fazer estripulias. Há muito que não vejo o apito dos professores e os carros de som da CUT na Praça da Matriz a atordoar – merecidamente – a paciência do governador.

Pois nos últimos dias, entretanto, se viu em Porto Alegre sucessivas manifestações contra o aumento das passagens de ônibus e da lotação. Dizem que foi coisa promovida por gente do PSOL, mas salvo uma ou outra bandeira, não havia nada que induzisse orquestração, tanto que a repetição dos atos acabou por engrossar a multidão, na maioria jovens estudantes ou não.

Lembro de 1968, num fim de tarde de maio, saindo em passeata da Faculdade de Filosofia rumo à frente da Prefeitura. Os militares ainda não haviam apertado o torniquete, mas não toleravam ato público hostil ao regime. Por onde passávamos éramos recebidos com aprovação de gente de dentro dos ônibus, das sacadas dos edifícios e das calçadas, enquanto helicóptero da FAB sobrevoa nossas cabeças.

E foi justamente no Largo da Prefeitura que a Brigada fechou o cerco – surda ao refrão que alertávamos: “é pacífica, é pacífica..!” – e investiu contra nós a cavalo e a pé, distribuindo covardemente espadaços e cassetadas. À força a passeata foi dispersa. O centro da cidade tornou-se um teatro de guerra. As lojas fechadas, as pessoas se protegendo onde podiam, pois a violência da Brigada corria livre, não distinguindo quem participava ou não do movimento.

Isso não impediu que, dias depois, a Faculdade de Filosofia fosse tomada pelos estudantes. Depois, todos sabem no que deu. No fim daquele ano foi editado o AI-5, muitos daqueles estudantes escolheram a clandestinidade e a luta armada, outro tanto seguiu a vida “normal”. Mas naquele maio de 68 o que nós queríamos era apenas liberdade que nos havia sido  sonegada.

E agora, neste ano de 2013, o que os estudantes buscaram em Porto Alegre foi a diminuição do valor do transporte público, para que o trabalhador não fosse mais uma vez saqueado e vilipendiado pelo sôfrego empresário aliado ao poder público. Não houvesse o berreiro, a pichação, o quebrar vidraça, certamente o clamor das ruas não ajudaria a sensibilizar o douto magistrado a dar a liminar que rebaixou o valor da passagem do ônibus e da lotação.

A vidraça quebrada se repõe. O pichado se apaga com uma pintura nova. Pior seria se a ira santa do povo invadisse a Prefeitura – seria incontida.  Quando, em 64, o senador Auro de Moura Andrade numa atitude inconcebível com  João Goulart, que se encontrava em território nacional, declarou vaga a Presidência da República, o deputado Rogê Ferreira, como último recurso que lhe restava contra o ato desvairado do presidente do Senado, chegou até Auro e lhe disparou cusparadas. O senador Almino Affonso chamou de “cusparadas cívicas”.

Pois o comportamento dos estudantes, em Porto Alegre, em alguns momentos, em luta pela baixa do preço do transporte – tão criticados pela mídia –  bem analisando, e parafraseando o senador Almino, não passaram de sobejos cívicos.

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