José Alberto Santos da Silva
Colunistas

Visita a Tia Chininha – José Alberto Silva

Eu flutuava com a velocidade de um raio. Frente a uma casa rústica como as demais naquela favela sórdida percebi haver uma faísca a mover-se entre as pessoas. Percebi que aquela luz era uma espécie de túnica que retirada revelou-me a figura de uma negra alta, jovem e corpulenta; seu sorriso largo era a fonte do brilho refletido pela casa. Não a reconheci. A moça luminosa pegava um e outro pela mão e o trazia a mim para apresenta-los: este é teu avô fulano, este é teu bisavô, teu pai, tio, primos e irmãos. Muitos, sem te-los conhecido em vida. Conforme me apresentava eu os identificava como se dissipasse minha mente de um torpor ou se calçasse lente para sanar miopia. Tentava abraça-los sem conseguir. Olhei para a moça e percebi ser a Tia Chininha na juventude. Ela era daquelas tias chamadas Cotinha ou Chininha que, petrificadas, se queixam mas não morrem de pandemias nem de banhos de chuva. Matriarcas tratadas de “tia” até pelos filhos.

Aquela que se pensava imortal ou fantasma de nós mesmos um dia viu seu coração deprimir-se no confinamento em função da Covid-19 e disparar em direção ao Pai eterno. No início da pandemia receava-se pela saúde da Chininha, vez que sem funeral nem vacina, corria pelos corredores de hospitais cheios de criminosos de jaleco a macabra sentença do – “óbito também é alta”. Circularam mil teorias mortais para explicar o sucedido quando sua passagem se explicava por si mesma como honra à glória divina de findar. Para sempre, nem as estrelinhas pretas que sobem aos céus. Por meses ela parecia plasmada em nossas mentes e conversas. Muitos relatavam pegar-se pensando nela, como estaria e onde, se tinha jantado e tomado remédios com taças de vinho. Andar na zona norte dava a impressão de que sua rua fosse a principal entre vários bairros por sua passagem automática.

Noite dessas dormi mais cedo disfarçando leve mal estar. Não levantei pelo xixi e acordei mais tarde do que de costume graças aos sacolejos de minha noiva para o romântico café matinal. Para dormir aquietei minha mente como fazem os esotéricos em relaxamento para viagens ao interior das câmaras do coração. Agora martela-me a nítida lembrança de um sonho vívido, viagem transcendental, experiência de quase morte ou transe mediúnico tido naquela noite. Em função de remédios bebo muita água para diluí-los expelindo-os pelo mijo que se estende noite à dentro. Neste movimento noturno lembro vagamente de sonhos tidos em cada período de sono, sem atribuir lhes importância, sem relação com experiências do dia, sem programação mental para sonhar com o que quer que seja, até porque não sei fazê-lo.

Relaxado, despertei saindo de casa para visitar a Chininha. Moro no Sul de Porto Alegre ela morava na zona norte. Visitá-la exigia disposição para dirigir longo percurso coalhado de engarrafamentos e sinaleiras desreguladas. Além, claro, de paciência para a visita em si. Por morar sozinha próximo de completar 100 anos, mantinha-nos em sobressalto. Quando não estava em turnê pela casa dos outros, seu passatempo era ligar ou atender à porta para noticiar estar viva; que não tinha posto fogo no apto, que havia recebido refeições com tais e tais defeitos, anunciava troca de médicos e remédios; que recebera visita de sumidos parentes desalmados. Planejava passeios e viagens, intimava a todos para distraí-la – só um pouco. Em todos plantava algum remorso. Sempre queixosa, carente, doentinha, labirintite, comorbidades mil, isolamento pandêmico. O abandono se aproveitou e a Chininha foi picada pela saudade negra confundindo nossos sentimentos de culpa.

Diziam que ela não tinha memória, sim seu extrato mental calcificado. Não confundia o que exigia de cada um. Onde passava temporadas gostava de algo: ora a cama, o tamanho da TV, horários de saídas, as comidas, enfim. Lá em casa, com folhagens e vasos com nomes de mulheres, o jardim lembrava seu pai, jardineiro na colônia africana até a década de 40. Como sou do samba, queria ir a outra exposição de quadros e fantasias do Guaracy Feijó, ou almoço nos Imperadores do Samba animado pelo Gsem Comentários. Ela me cobrava fotos que guardo dela com seu falecido marido, batidas por Joel Manoel Domingos. Lembranças como sobrevivente de uma carrada de irmãos que a faziam choramingar com seu choro à seco. Da minha filha, queria saber quando a levaria a seu cabelereiro para – ajeitá-la. Para todos perguntava sobre a festa em comemoração a seu centenário em janeiro. Às vezes falava como fiel filha de santo; noutras nem tanto ao reclamar certo abandono dos orixás. Mudava nossos planos ao dizer de “compromissos de religião”, na praia, no campo, noutra cidade. Ao chegarmos ao local, explicava que orixás haviam aconselhado uma ida até o Lami, a Tramandaí, no verão, Gramado ou Canela, com café colonial, no inverno, ou em Floripa, apenas para – arejar sua mente. E pensar que a gente tinha outros planos para tal final de semana.

No trajeto eu pensava nela e a expectativa de visita-la trazia alguma inquietação. Lembro que na medida em que andava passei a sentir-me meio à voragem de um temporal e a perceber que ruas asfaltadas tornavam-se estreitas, chão batido, ruas vagamente identificadas como se eu tivesse entrado numa favela. Edifícios davam lugar a casas rudes de madeira crua de aspecto precário; no lugar de carros passei a ver carroças enfileiradas como se eu andasse na Porto Alegre das décadas de 20/30; as ruas, antes desertas, tornaram-se repletas de pessoas em diversas atividades, vendedores ambulantes, animais levados por homens descalços, meninos brincavam em ruas sem saneamento, águas empossadas, taquareiras desoladas da antiga colônia africana do Alto Petrópolis. Eu atravessara o túnel do tempo?

A curiosidade era que as pessoas eram negras e de um escuro visto atualmente com a imigração de africanos. Outra curiosidade era que um som persistente de tambores religiosos de batuque me acompanhava num volume crescente até que cessou quando parei frente a uma casa que se diferenciava por alguma luminosidade. Eu não conhecia ninguém; me cumprimentavam cerimoniosos, porém, fiquei sem saber se ouviam minha fala porque eu não os ouvia. Fiquei em paz ao perceber que conviviam com os senhores da elevação. Não havia anjos cruéis porque ninguém abria mão de desfrutar da glorificação ao alcance de todos. Ao reconhecer ancestrais, meus pais, tios, primos e irmãos, percebi a grandeza a desfrutar pelos movimentos que faziam como passos de dança e suas falas eram melodias que diziam ser o erro proibido e que o talvez ganhara um basta!

Meu médico alertou sobre possíveis ocorrências cardíacas que eu podia experimentar e recomendou movimentos discretos mas constantes. O certo é que ainda estou sem saber se tive um sonho vívido ou uma “experiência de quase morte”, como diria o Dr.Raymond Moody Jr. Minha noiva me sacudiu e me soqueou. Ao longe comecei a ouvir buzinas e vozes vindas da rua. Para parafrasear Lupicínio Rodrigues saímos do céu do útero que é escuro para chegarmos ao inferno desse mundo ao encontro de luz. Ao morrer, a luz que vemos ao fim do túnel deve ser a transição para uma luz mais forte como aquela vista frente a casa onde estavam falecidos e a Chininha. Nessa “viagem” eu não sentia as velhas dores. Se ao morrer temos sensações tão agradáveis é desnecessário o tratamento eutanásico para “passamento” confortável.

Visitas a Tia Chininha rendiam estórias. Esta rendeu um susto. Nascida 33 anos pós abolição conheceu a liberdade de ir e vir para o sub emprego, sub moradia, a fome, a estruturação genocida do racismo que cem anos depois ainda mata os seus. Dizia do alto de seu orgulho pretão que para esquivar-se do Banzo, Saudade Negra, título de obra de Oliveira Silveira hoje chamada depressão, evitava lembrar de – certas coisas. Deixava escapar que crianças não passavam dos sete anos, chamadas de estrelinhas que subiam ao céu; morria-se de tuberculose, escorbuto, alcoolismo por receberem salários em cachaça, suicídios, enforcamentos cristãos frente à igreja das Dores, além de sermos perigosos para nós mesmos pela permissão tácita de nos matar uns aos outros. Antes forçavam nossa reprodução para o trabalho. Ela aconselhava uniões estáveis e atenções aos filhos como educação amorosa. Era quando exibia lucidez altiva para discursar com forte carga de rancor; dizia que a ilusão amorosa mantém nossos sonhos – porque sem sonhos a gente embrutece como coisa. “ Coisas” por tantos anos a maioria das “gentes” ainda pensa que é coisa – “custam pra se libertarem através de uma coisa que não tinha no meu tempo, vocês procuram recuperar o que eu vi se perder aos poucos com o sofrimento da fome e da violência e que hoje se quer recuperar através da – consciência negra!”

Agradeci à minha amada noiva por me ressuscitar desta catalepsia que me levaria a ser enterrado vivo. No entanto, voltei em dúvida sobre o Pai Nosso ser o mesmo dos algozes do Brasil até porque eles não aceitam igual paternidade. Até hoje eu não disse nada disso para minha noiva recentemente conquistada pelas batidas suaves do meu coração. Voltei à vida com ela aos prantos, soqueando meu peito, a me sacudir e a gritar:

 – Nossa Bunito! A cama está toda mijada!

José Alberto Silva

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